A pergunta segue correndo em minhas veias.
O que é realmente meu?
Eu comecei a olhar pra trás e perguntar o que realmente é meu e o que me foi designado por outros. Comecei a perceber como lá no fundo eu já gritava por essa liberdade de ser eu e ter coisas minhas há muito tempo, como por exemplo como eu era desesperado pra ter o cabelo colorido e era ridículamente frustrado porque minha mãe não deixava de forma alguma. E quando deixava, eram apenas “tons de vermelho” e embora eu tenha trabalhado muito com isso, quando eu finalmente pintei meu cabelo de verde, azul, roxo, por mais que eu não estivesse feliz com meu cabelo ou minha aparência num geral, apenas por ter finalmente feito o que eu queria fazer com o meu cabelo, foi a coisa mais satisfatória e libertadora que eu podia ter feito.
O mesmo ocorreu quando eu finalmente comecei a fazer as tatuagens que eu tinha ideia de fazer desde os doze anos. Foi impulsivo? Talvez. Mas eu realmente tinha essas ideias há muito tempo e até hoje quando olho pra elas eu me sinto satisfeito. Elas estão aí porque eu tomei a decisão de tê-las. São minhas. Minhas escolhas me levaram a tê-las. E eu as amo.
Assim comecei a questionar mais e mais o que é realmente meu.
Me vi completamente apegado às minhas canecas, o meu único prato e copo de plástico que comprei quando morei sozinho, assim como meu um garfo, uma faca e uma colher. Eu ficava enfurecido quando não achava alguma das minhas coisas. Porque eram minhas. Eu via que não era saudável, mas eram minhas coisas.
Mas ver que não era saudável não me fazia entender o motivo. Aos poucos conforme o tempo foi passando eu fui percebendo ponto a ponto, cada coisa que não era realmente minha e que me frustrava exatamente por causa disso.
“Meu quarto” nunca foi realmente meu. Quando era criança eu dormia sozinho nele, mas quem decidia onde ficavam as coisas (e que coisas ficavam lá) eram meus pais. Depois, dividia o quarto com a minha mãe, então era o quarto dela. Eu fui frustrado por muito tempo por não poder colocar pôsters na parede. Era tudo que eu mais queria, eu queria ter algo meu, mas não podia. Era o quarto da minha mãe, na casa da minha avó, onde eu dormia junto. Não era meu. O computador não era meu. O armário não era meu. A roupa de cama não era minha. Quando eu fui pra uma pensão, o quarto não era meu. Era o quarto da pensão onde eu e mais três pessoas moravam… Digo, dormiam. Não dava pra realmente morar ali. Era só um quarto numa casa onde mais de sessenta pessoas moravam. Nada era meu. Só minha roupa de cama e as coisas que eu guardava muito bem trancado no armário de uma porta que só era “meu” porque eu comprei a tranca que usava. Também não era meu. Na outra pensão também. Era o quarto de uma menina onde eu dormia num canto num colchão emprestado. Meu armário eram minhas malas…. Quer dizer, as malas eram emprestadas dos meus avós, também não eram minhas. Mesmo depois de voltar, era sempre “meu quarto na casa de fulano”. Ou então “minha cama na casa tal”. Eu nunca tive meu quarto.
Eu posso ter escolhido pra onde eu fui. Posso ter escolhido onde dormi. Eu sei que eu só passei por onde passei por escolha minha, mas nada era meu a não ser a escolha. Isso me aperta e me afoga mais do que muita coisa pior que eu já passei.
Percebi que comecei a me revoltar com as coisas que eram realmente minhas quando questionei meu visual. Eu nunca tinha escolhido quem eu era. Meu “estilo” era apenas roupas que havia ganhado de presente de familiares. Eu não tinha minhas roupas, eu nunca realmente escolhia elas porque as vezes que eu escolhia algo, era com alguma das minhas avós junto e elas tinham que gostar também. Eu não tinha realmente meu cabelo porque eu ainda tinha que agradar minimamente as pessoas que viviam comigo. Então foi mais fundo, eu nunca escolhi ser daquele gênero. Quando eu percebi a imensidão do quanto eu estava sendo miserável por aceitar as escolhas que eu nunca fiz, eu cheguei ao fim do túnel… Mas ainda não era o fundo do poço.
Fundo do poço eu cheguei quando eu vi que nenhuma das escolhas que eu fizesse iriam ser dadas a mim da mesma forma que as escolhas dos outros foram enfiadas em mim a vida inteira.
Você quer seu próprio estilo? Trabalhe por ele. Mas eu não precisei trabalhar pelo estilo que escolheram pra mim. Pois bem, problema seu.
No “mundo real” é assim. Os outros fazem escolhas pra você.
Ou você decide o que você quer e boa sorte não servindo pra absolutamente nada que a sociedade quer. Você está sozinho por escolha própria, vai se virar por escolha própria pelo seu próprio egoísmo. Aceite. Ou você deixa que os outros decidam por você ou você fica miserável e trabalha dez vezes mais.
Eu comecei a me revoltar de verdade.
Eu não quero saber do mundo ou da sociedade. Eu quero ter minhas coisas. Eu quero ser eu mesmo e apenas isso. Quem não quiser me aceitar não me merece. Eu preciso me impor, eu preciso existir.
Então o quê mais foi imposto a mim?
Meus gostos eram meus, mas muita coisa foi influenciada por opiniões alheias e principalmente por relacionamentos passados. Comecei a revisitar várias coisas do meu passado. Disso eu gosto mesmo. Ah, disso eu não gosto muito. Uau, eu gosto muito disso! Aos poucos remodelei meus gostos. Estilos de me vestir e me portar que eu gosto. Músicas que eu ouço porque eu gosto. Não por querer impressionar alguém, não por querer me encaixar em algum grupo. Coisas que não gosto simplesmente porque não me agradam, não porque fulano de tal achava ruim ou ciclano achava “coisa de perdedor”. Eu gosto. Eu. Me agrada, eu quis pra mim, eu sou.
Amigos que eu fiz. Meus amigos. Pessoas que eu convivo porque eu quero estar perto delas. Não porque eram as únicas opções, não porque eu queria estar perto de apenas uma pessoa naquele grupo, não porque eram “os únicos que eu poderia ter naquele momento”. Deixei de ter medo de ficar sozinho – claro que não completamente. Apenas o suficiente pra realmente dar peso ao ditado “antes só do que mal-acompanhado”. Eu não gosto de fulano? Não vou ficar perto de fulano. É desrespeitoso com alguém não estar lá naquele momento porque fulano vai estar lá? Foda-se. Eu não preciso me desgastar estando na presença de uma pessoa que não me agrada e não me faz bem só porque outra agrada. Se a pessoa ficar ofendida por algo assim, ela não realmente se importa comigo. Não me merece.
Foi assim que acabei fazendo novos amigos. Amigos de verdade. Pessoas que eu me aproximei porque quis, pessoas que admiro e gosto e demonstram gostar de mim também, gostar da minha companhia. Pessoas que tem gostos parecidos com os meus, que são só meus dessa vez. Eu me perdi completamente na sensação de ter amigos. Eu não tinha amigos há muito tempo e nunca havia sido capaz de perceber pelo simples motivo de não ter referência de como era… A memória havia se perdido completamente nos últimos anos tumultuados e perturbados. Então… Se eu não tenho amigos há tantos anos, o que são essas pessoas que eu chamei de amigos até agora? Quem dessas pessoas realmente são meus amigos? De quem eu escolhi ser amigo?
Me doeu ver que a pessoa que eu sempre dei o título de “melhor” não era realmente um amigo há muito tempo e eu só não havia percebido porque não tinha amigos pra saber como era. As coisas haviam divergido e se perdido há tantos anos e eu me prendia porque eu achava que aquela era minha referência de amizade… Mas eu estava enganando a mim mesmo e à pessoa. Anos de enganação ingênua e inocente, uma toxicidade absurda desconhecida pros dois lados pois estavam a tanto tempo sem saber o que era ar puro.
Hoje olhei a minha volta e bem… Eu não tenho mais nenhum dos “pilares” que definiam quem eu era antes. Todas as coisas “mais antigas” que eu tinha na minha vida se foram.
E eu não sinto falta de nenhuma delas.
Eu me sinto leve. Embora todas as minhas ansiedades, depressão e tudo mais que vem me acompanhando sob a cláusula “saúde mental” (ou por assim dizer, a falta dela) nada disso muda a leveza e a liberdade que eu sinto por dentro.
Agora as únicas coisas na minha frente são essas coisas que eu poderia abandonar mas não seriam corretas de se fazer. Não por conta de algum padrão social, mas pelos meus próprios valores.
Eu sou a pessoa menos qualificada pra morar com a minha avó. Eu não tenho saúde mental pra lidar com ela envelhecendo. Eu não tenho tido saúde pra alimentar a mim mesmo sozinho, imagina lidar com todas as contas de um apartamento que eu nem uso? Que nem é e nunca foi meu? Lidar com a vida de outra pessoa por inteiro! Eu não tenho condição alguma de fazer isso e ainda tentar resolver minha vida, mas eu aparentemente sou a única pessoa habilitada a fazer isso agora e isso está me drenando cada vez mais.
Eu não quero voltar pra lá. Eu chamo de “casa” porque depois de tudo o que passei, pra mim “casa” é onde minhas coisas estão, e elas estão lá no momento. Mas não é meu quarto. Eu não escolhi o apartamento. Eu não escolhi o quarto. Eu não escolhi o armário. Eu não escolhi absolutamente nada, não é meu. Não entra sol pela janela, não tem como abrir ela por completo, além das grades… Céus, as grades… Desde a primeira vez que entrei naquele quarto ele deu a sensação de exatamente o que ele é: Minha cela no fundo da masmorra. Se eu quisesse me matar ali eu não conseguiria.
Mas eu não posso ficar passeando de casa em casa dos meus amigos fugindo do problema, isso não resolve nada e eu sei que não. Mas agora eu não tenho mais nenhuma amarra do passado, só a do presente e eu tenho que tirar força de onde for pra conseguir me livrar dela. Mesmo que seja minha força em cápsulas, que eu ainda tenho que pedir ajuda pra comprar…
Céus, eu não aguento mais precisar de ajuda pra simplesmente existir.